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Tipo:
Artigo
Data de Publicação:
Autor:

José Paulo Nardone

Ementa / Resumo:

Após vinte meses de vigorosos debates e discussões, foi promulgada em 05 de outubro de 1988 a vigente Constituição Federal, batizada como a “Constituição Cidadã”, prestes a completar 35 anos.

Cada novo texto constitucional traz consigo reflexos do contexto em que foi produzido e com a nossa sétima constituição não foi diferente. O Brasil superava um período de ditadura, passava a respirar ares democráticos e assim buscou que a nova constituição assegurasse a inclusão social e combatesse a desigualdade, afinal, indubitavelmente, não há democracia que sobreviva a graves mazelas sociais, como as desigualdades e a pobreza.

Nesse sentido, o processo de construção da constituição foi marcado pela efetiva participação popular por meio de representantes dos mais diferentes segmentos sociais, havia indígenas, mulheres, garimpeiros, seringueiros e quilombolas, especialistas  jurídicos, servidores públicos, técnicos e, enfim, praticamente todos os segmentos componentes do tecido social se fizeram presentes, embora, evidentemente, aqueles com maior força de pressão tenham se sobressaído na efetividade da inclusão dos seus interesses, aspecto intrínseco ao exercício do jogo democrático em sua articulação política.

Uns mais, outros menos, o fato é que o longo texto composto por 245 artigos e nove títulos, acabou por contemplar demandas de diversos setores da sociedade, criando desde aí uma dimensão da dificuldade de que se revestiria a concretização dos mandamentos ali lançados.

Definida como uma regra superior estabelecedora dos princípios de justiça que regulam as relações entre os indivíduos e entre a sociedade e o estado, seus mandamentos habilitam a democracia e regulam o exercício da alternância de poder, definindo os preceitos básicos do nosso estado democrático de direito.

Evidentemente que não seria de se esperar que ao longo desses trinta e cinco anos, o texto constitucional permanecesse intacto, pois a dinamicidade e a flexibilidade das relações sociais exigem ajustes, adequações e inovações.

Desde a primeira emenda constitucional, datada de 31/03/1992, até a mais recente delas, promulgada em 05/07/2023, foram nada menos de 129 emendas constitucionais, além daquelas seis emendas denominadas revisoras, previamente definidas pela constituição a serem realizadas após os cinco primeiros anos de vigência. De longe, entre todas as nossas constituições, é aquela que mais sofreu alterações.

Assim, em que pesem todas as dificuldades estabelecidas para a aprovação de uma emenda constitucional em nosso país, ou seja, a necessidade de 3/5 dos votos de deputados e senadores em dois turnos de votação em cada Casa, (art. 60, § 2º), ainda assim nosso país produziu um número próximo de 4 emendas constitucionais por ano, o que não é pouco, especialmente se compararmos com as mudanças constitucionais em outros países, como é o caso dos EUA, onde sua constituição, com mais de trezentos anos de vigência (datada de 1789 - a segunda mais antiga do mundo), até os nossos dias conta com apenas 27 emendas.

Não se perca de vista que a constituição norte americana é composta de tão somente 7 artigos, de âmbito estritamente constitucional, enquanto a nossa se caracteriza pela complexidade e extensão, tratando de matérias não propriamente constitucionais e por vezes tida como burocrática e excessivamente analítica.

Tal característica pode ser medida pelo exorbitante quadro de regulamentações. Números obtidos junto ao portal da Câmara dos Deputados, indicam que há 438 dispositivos passíveis de regulamentação, sendo que 164 ainda não foram realizadas, inclusive, em 69 destes sequer há proposições apresentadas.

Diante desses números, percebe-se que nossos legisladores possuem enorme apetite em produzir emendas constitucionais, mas reduzida disposição para regulamentar temas postos, tornando alguns dispositivos constitucionais inertes, prejudicando sua aplicabilidade, naquilo que muitos denominam como “letra morta”, clássico exemplo de perda da força normativa, demonstrando estarmos em atraso no cumprimento do nosso “dever de casa”.

Nossa constituição não pode nem deve ser vista como uma “obra sagrada ou imaculada” e que não se permita ser atualizada ou corrigida. Nesse sentido há em seu âmago a tutela às ditas “cláusulas pétreas”, conforme previsto em seu artigo 60, salvaguardando premissas envolvendo a forma federativa de estado, o direito ao voto, a separação dos poderes, além dos direitos e garantias individuais, estes, temas custodiados em sua inteireza, pois imutáveis e perenes.

Dentre tantas alterações até aqui realizadas, há emendas que podem ser avaliadas positivamente pelos benefícios produzidos, como aquela que garantiu, em 2013, a igualdade de direitos entre trabalhadores domésticos, urbanos e rurais, uma medida de reconhecida justiça social, ao passo que podemos pinçar outras consideradas por muitos como oportunistas ou casuísticas, como é o caso da questão da reeleição, da reforma eleitoral, ou da distribuição de fundos para campanhas eleitorais, entre outras.

Por conta do excessivo número de alterações em seu texto, a atual Carta tem recebido muitas críticas, chegando a ser denominada por alguns de “colcha de retalhos”.

Em oposição às críticas, há justificativas que mencionam como causas desses números elevados, a sua extensão e variedade de temas, além da crescente dinamicidade de novas relações que se criam e se modificam em uma sociedade viva e pulsante.

Diante de tal antinomia, resta-nos aplicar o exercício da ponderação, afinal, desde que comedidas, as emendas constitucionais se revelam como instrumento necessário ao aperfeiçoamento da legislação, especialmente numa democracia em construção, como a nossa.

Não nos esqueçamos que a Constituição é um tecido vivo, moldado a partir das conexões, interesses e necessidades sociais, em suas relações entre os indivíduos que a compõem, bem como entre os grupos sociais que se formam e o Estado.

Nessa plêiade de indivíduos, grupos e demandas, natural que aconteçam movimentos e adaptações nos regramentos legais, amoldando-se a novas realidades, a partir também do genuíno jogo democrático da alternância de poder, com diferentes visões sociais e ideológicas, a cada movimento buscando estabelecer seus pontos de vista como regra, implicando em mudanças legislativas e mesmo constitucionais.

Enfim, sejam numerosas ou diminutas as modificações na Carta Constitucional, o fato é que nossa sociedade tem sido proativa, fazendo ecoar sua voz junto aos legisladores que se movimentam em atender e registrar os anseios sociais que representam. Isso é participação social, isso é democracia.

Que siga em frente nossa Constituição Cidadã por outros tantos anos, com maiores ou menores mudanças, mas sempre refletindo aquilo que os cidadãos, seus patronos, buscarem para bem representar as suas aspirações, alinhando e delineando o caminho da nossa sociedade em direção ao futuro.

*José Paulo Nardone é Diretor-Técnico da Unidade Regional do TCESP em Bauru (UR-2), Mestre em Direito do Estado e Professor Universitário.