ARTIGO: A alocação de riscos no contexto da Nova Lei de Licitações
Tipo:
Artigo
Data de Publicação:
Ementa / Resumo:

* Sergio de Castro Junior

Se fosse possível resumir a nova Lei de Licitações e Contratos, Lei Nº 14.133/2021, em uma só palavra ela seria: planejamento. Não só porque a expressão figura 12 (doze) vezes no texto do referido diploma, tendo sido alçada, inclusive, ao status de norma principiológica (artigo 5º), mas, sobretudo, porque, a partir de uma leitura sistemática da lei, percebe-se ter sido esse o grande objetivo almejado pelo legislador.

Tal opção se deve, ao menos em parte, ao elevado número de críticas que a norma antecessora, Lei Nº 8.666/1993, recebia a esse respeito, já que, para muitos, apesar de seus méritos, era um estatuto que permitia certo amadorismo na condução dos negócios da Administração Pública, que, por vezes, contratava sem uma visão macro de suas necessidades, desconsiderando as probabilidades de insucesso que poderiam incidir em seus ajustes.

Tanto é assim que em nenhuma passagem a Lei Nº 8.666/1993 exigia ou induzia, ao menos expressamente, práticas voltadas ao planejamento, enquanto procedimento balizador das contratações públicas, tampouco disciplinava a prévia alocação de responsabilidades por eventos futuros. Só com a Lei das Parcerias Público- Privadas (PPPs), Lei Nº 11.079/2004, e, posteriormente, com a Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), Lei Nº 12.462/2011, e Lei das Estatais, Lei Nº 13.303/2016, que ganha corpo a ideia de repartição objetiva de riscos.

É, portanto, nesse contexto histórico, no qual passam a ser valorizadas medidas voltadas a conferir maior eficiência e segurança jurídica às contratações públicas, que exsurge a importância de avaliar, previamente, as possíveis ameaças inerentes a cada tipo de ajuste, bem assim de atribuir responsabilidades, no caso de sua eventual concretização.

A partir dessa compreensão, vê-se que o enfoque trazido pelo novo diploma licitatório revela uma grande mudança de paradigma, já que, até então, à luz da Lei Nº 8.666/1993, o que se tinha de mais próximo de uma prevenção de riscos era a possibilidade de se exigir garantias, tanto para participar do certame como para contratar, solução que, todavia, frequentemente se mostrava insuficiente para evitar os tão comuns pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, instrumento até então visto com grandes ressalvas pelos órgãos de controle externo, diante da reiterada constatação de desvirtuamento na sua utilização.

Não se afigura equivocado, portanto, admitir que a alocação de riscos advém, ainda que por reflexo, como uma ferramenta voltada a mitigar a ocorrência de tantos pleitos de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro, hipótese de alteração contratual que continua presente no ordenamento jurídico, mas adstrita às situações de força maior, caso fortuito e fato do príncipe, ou em decorrência de fatos imprevisíveis, ou previsíveis, porém, de consequências incalculáveis, e que, doravante,
deve respeitar, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato (artigo 124, inciso II, alínea “d”, da Lei Nº 14.133/2021).

Mas, afinal, o que seriam riscos? Especificamente no que tange aos contratos administrativos, podem ser compreendidos como eventos futuros e incertos que afetam a execução contratual e geram custos adicionais, e que, portanto, necessitam ser assumidos por alguma das partes, ou por ambas. São exemplos de riscos que podem impactar uma obra ou serviço público: ocorrências climáticas, como chuvas excessivas ou deslizamentos; atrasos na expedição de licenciamentos ambientais; óbices de natureza trabalhista; variação cambial com repercussão na aquisição de insumos importados; etc.

Embora gire em torno de eventos futuros que podem repercutir no que foi pactuado inicialmente, a ideia de alocação de riscos pressupõe hipóteses presumíveis, baseadas em estudos que devem levar em consideração fatores como a natureza do objeto contratual, pesquisas mercadológicas e experiências pretéritas, alocando-se a responsabilidade mediante indicação expressa dos riscos a serem assumidos pelo setor público e pelo setor privado.

Partindo dessa concepção, é possível concluir que quanto mais longa a vigência do contrato, maior a probabilidade de concretização de riscos, daí porque ajustes com maior extensão temporal reclamam maiores cuidados no que tange à prevenção de hipóteses prejudiciais à sua boa execução.

Vale registrar que, embora esteja implícito no texto do novo diploma o incentivo à implementação da alocação de riscos sempre que possível, não é toda e qualquer contratação que deverá necessariamente balizar-se por tal procedimento: o artigo 22, caput, da Lei Nº 14.133/2021 estabelece que o edital “poderá” contemplar matriz de alocação de riscos entre contratante e contratado, ao passo que o § 3º do referido dispositivo preceitua que “quando a contratação se referir a obras e serviços de grande vulto ou forem adotados os regimes de contratação integrada e semi-integrada, o edital obrigatoriamente contemplará matriz de alocação de riscos”.

A partir de uma interpretação literal, poder-se-ia dessumir que, excetuadas essas hipóteses expressamente indicadas na lei, a alocação de riscos seria meramente opcional; todavia, há que se se levar em conta os princípios norteadores das licitações e contratações públicas, que, no caso concreto, poderão demandar referida medida, notadamente quando a complexidade do objeto, a duração do ajuste ou outras variáveis tornem recomendável a adoção do procedimento, daí porque cumpre aos agentes públicos, em observância à eficiência, razoabilidade e economicidade (artigo 5º), agir com discernimento para identificar as situações em que a confecção ou não de uma matriz de riscos melhor atenderá ao interesse público.

Ter em mente que a Lei Nº 14.133/2021 passou a adotar a alocação de riscos como uma decorrência lógica do planejamento torna mais compreensível a, por assim dizer, dupla previsão dessa medida: seja na fase preparatória da licitação (artigo 18, X) e da contratação direta (artigo 72, I), onde são realizados os estudos técnicos preliminares que vão embasar a futura contratação, seja posteriormente, já como cláusula editalícia (artigo 22) e contratual (artigos 92, IX, e 103), com caráter definitivo.

Daí porque tem se convencionado chamar de “análise de riscos” ou “mapa de riscos” os procedimentos levados a efeito durante a fase preparatória, enquanto “matriz de riscos” o resultado final previsto no edital e no contrato.

Na prática, a matriz de risco possivelmente se traduzirá numa tabela, que poderá estar inserta numa cláusula contratual ou mesmo compor um anexo do contrato, onde devem estar expressamente indicados, ao menos, os tipos de riscos (ocorrências) e a parte que por eles responderá (contratante, contratada ou ambas), inclusive em qual proporção, se for o caso. A lei ainda dispõe sobre a necessidade de se estabelecer mecanismos que afastem a ocorrência do sinistro e mitiguem os seus efeitos, caso este venha a se concretizar durante a execução contratual (artigo 22, § 1º).

Uma das principais consequências da alocação de riscos é que ela fatalmente impactará na proposta comercial a ser apresentada pelas empresas que pretendem contratar com a Administração Pública, devendo, portanto, ser devidamente aquilatada para fins de projeção dos reflexos de seus custos no valor estimado da contratação.

Disso decorre que uma desarrazoada atribuição de riscos aos particulares poderá acarretar indesejada majoração dos preços ofertados; em contraposição, uma exacerbada concentração de responsabilidades na esfera da Administração contratante poderá lhe ensejar assunção indevida de ônus financeiros, de modo que em ambos os casos advirão prejuízos ao erário.

Para evitar tal situação, sem embargo dos imprescindíveis estudos preliminares, que sempre deverão levar em consideração as peculiaridades de cada ajuste, a lei traz alguns parâmetros genéricos para distribuição de responsabilidades, como, por exemplo, a necessidade de considerar a natureza do risco e a capacidade de cada setor para melhor gerenciá-lo (artigo 103, § 1º), bem assim previsão de que riscos que tenham cobertura oferecida por seguradoras serão preferencialmente transferidos ao contratado (artigo 103, § 2º).

A alocação de riscos configura instituto ainda em construção, visto que, embora vigente desde 1º de abril de 2021, o atual estatuto licitatório só passou a operar com exclusividade a partir de 2024, período ainda insuficiente para alguns órgãos públicos, notadamente os municipais de pequeno porte, aperfeiçoarem o procedimento, o que permite concluir que só com o passar do tempo e com as indicações do próprio mercado haverá melhor ajuste à nova regra, estabelecendo-se quais os riscos de maior incidência, qual das partes deve preferencialmente ser indicada em dadas circunstâncias e de que forma a partição de responsabilidades pode ser adotada sem que qualquer das partes seja onerada desproporcionalmente, sempre com vistas a resguardar da melhor forma possível os princípios da competitividade, da economicidade e do interesse público.

*Sergio de Castro Junior é especialista em Direito Administrativo Econômico e Chefe de Gabinete do Ministério Público de Contas do Estado

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