ARTIGO: Vacinação: Qual o limite da autonomia individual versus a proteção coletiva?
Tipo:
Artigo
Data de Publicação:
Ementa / Resumo:

* Fernanda Borges Keid

A autonomia individual representa a capacidade que uma pessoa tem para se autodeterminar, livre de influências externas que controlem suas limitações pessoais, emocionais ou ideológicas. Um ser humano autônomo, portanto, age livremente quando não há nada que o impeça de fazer opções.

Nesse sentido, considerando a ideia de Immanuel Kant, de que a autonomia seria o próprio fundamento da dignidade humana e da natureza racional, pode-se chegar à conclusão de que a autonomia, a liberdade e a dignidade parecem ser indissociáveis e preceituam a ideia compatível com a capacidade individual de autogestão.

É com base nos argumentos kantianos que se embasam aqueles que negam a vacinação, para si ou para seus filhos, havendo um inevitável afastamento de posicionamentos científicos para o âmbito da moral.

Contudo, a teoria de Kant há de ser repensada em face dos avanços tecnológicos e do pensamento utilitarista, na medida em que atualmente a prevenção de doenças de origem viral é segura, sob o ponto de vista médico-científico.

Diante deste contexto, no Brasil, o Programa Nacional de Imunização, criado em 1973, foi capaz de trazer numerosos benefícios à coletividade, como a erradicação de doenças imunopreveníveis, que se tornou referência mundial como ação voltada à promoção da saúde pública e individual, dando lugar ao que se chama de hesitação vacinal, ou seja, atraso na aceitação ou recusa do cidadão em se imunizar.

A hesitação vacinal é crescente, apesar da disponibilização das vacinais por ações proporcionadas pelo SUS, por intermédio de uma rede descentralizada, articulada e integrada, que proporciona o fortalecimento deste sistema, pois garante o acesso gratuito, universal e igualitário da população brasileira, seguindo os princípios e as diretrizes estabeleci- -dos pela Lei nº 8.080/90.

Por conseguinte, a cobertura vacinal contra doenças como caxumba, sarampo, rubéola vem diminuindo gradualmente desde 2013, e, mais recentemente, contra a poliomielite também, sob alegações das mais diversas ordens, como: qualidade do imunizante, segurança à saúde, percepção da eficácia, conflitos com a indústria farmacêutica, dentre outros, o que acaba por desencadear epidemias e mortes completamente evitáveis.

O Brasil, como estado democrático de direito, proporciona a discussão de cunho bioético no tocante à proteção individual e preservação da autonomia versus a adesão ou não adesão ao Programa Nacional de Imunização.

Por um lado, a literatura revela que pessoas de estratos econômicos mais elevados, que possuem acesso a informações não científicas, passam a ser influenciados por estas e acabam selecionando quais vacinas querem tomar e, algumas vezes, até abdicam de tomar todos os imunizantes. Por outra via, as classes econômicas mais pobres, em alguns casos, deixam de se vacinar devido à dificuldade de acesso aos serviços de saúde.

É função do Estado, pois, facilitar o acesso à população aos serviços de saúde e vacinas, com o objetivo de proporcionar as proteções individual e coletiva, sendo esta última influenciada pela primeira, na medida em que quanto maior a proteção individual, maior será a coletiva.

A imunização coletiva relaciona-se, dessa forma, ao bem comum, com a consequente redução de taxas de transmissão e proteção daqueles que não se vacinaram, por efeito biológico da proteção do grupo.

Ou seja, fica claro que os benefícios trazidos pela vacinação para saúde pública coletiva são indiscutíveis e, pensar autonomamente confronta o bem da coletividade, especialmente no Brasil, em que a vacinação infantil é obrigatória para a preservação da integridade física do menor.

A vacinação trata-se de uma responsabilidade ética e solidária de todos aqueles que podem aderir ao programa. Não se vacinar, portanto, é um atentado contra si mesmo e contra a autopreservação.

* Fernanda Borges Keid é Diretora de Saúde e Assistência Social do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCESP).