Direitos Sociais versus Equilíbrio Fiscal sob as lentes dos Tribunais de Contas, aos 35 anos da CF/88
José Paulo Nardone
Celebrando os trinta e cinco anos da “Constituição Cidadã” de 1988, muito se repete que a promessa de inclusão social lançada em seus preceitos se trataria de um verdadeiro “conto de fadas”, um conjunto de ilusões inatingíveis, dada a exagerada quantidade e diversidade de direitos ali lançados.
O argumento é de que a pretensão da busca pela igualdade e a extensão de garantias fundamentais incorporadas ao texto constitucional não encontram estrutura e recursos suficientes para se concretizarem, o que tornaria nossa Carta Magna um “rosário de boas intenções”, todavia, de materialização pouco provável.
Para além de tal avaliação, há análises indicando que insistentes tentativas de realização de tais objetivos, condenariam o estado brasileiro ao “abismo fiscal”, com todas as consequências que tal irresponsabilidade acarretaria.
O fato é que os constituintes optaram pela constitucionalização somente de políticas públicas necessárias à concretização de direitos sociais e não cuidaram de garantir a produção e manutenção de condições econômicas que assegurassem a viabilidade de tais compromissos.
Irrefutável que a formulação de políticas públicas guarda em si, como princípio elementar, a necessidade de que estejam previstas fontes de recursos que lhe darão amparo ao longo do tempo. Tal condição tem o condão de evitar as denominadas ações paternalistas por parte do estado, medidas que repercutiriam diretamente no plano fiscal, comprometendo o equilíbrio das contas públicas.
De outro lado, não há como não reconhecer a necessidade da atuação estatal em busca de avanços sociais. O contexto social que predominava no período em que se desenvolveu a assembleia constituinte de 1987/88 não deixa dúvidas disso, senão vejamos a situação da saúde e da educação.
Considerando-se que à época apenas os trabalhadores formais ou autônomos tinham acesso à assistência médica e previdência e que nada menos do que 60% da força trabalhadora estava na informalidade, grande parcela da população, especialmente mulheres, crianças, idosos e os mais pobres, estavam à margem de assistência. A Constituição de 1988 pôs fim a essa distinção com a universalização da saúde por meio do SUS, uma conquista sem precedentes.
Na educação, os números eram drásticos, haja vista que mais de 80% da força de trabalho não havia completado 8 anos de escolaridade e menos da metade dos jovens até 16 anos matriculados nas escolas completava o quarto ano de estudo.
A universalização do acesso ao ensino fundamental, com a determinação de aplicação mínima no ensino e criação do FUNDEF, fez com que em 2010 as taxas de matrícula alcançassem 100%. Cerca de 90% dos jovens com menos de 16 anos completaram 4 anos de estudo. Além disso, quase metade dos jovens entre 19 e 20 anos de idade, completou o ensino médio contra apenas 11% em 1980.
A reflexão aqui trazida não cuida de se questionar a necessidade de se combater as péssimas condições sociais presentes na vida de representativa parcela da população brasileira, mas, ao contrário, de discutir de que maneiras esse enfrentamento deve ocorrer, sem prescindir do necessário equilíbrio das contas públicas.
Incrementar a arrecadação por meio de uma reforma tributária que reduza a regressividade dos tributos e priorize a proporcionalidade nas contribuições, deixando de onerar o consumo ao invés da renda ou da produção, seria um caminho. A possibilidade de tributação sobre dividendos dos muito ricos, trazendo-os para o polo passivo tributário, ao passo que a classe média se vê antecipadamente taxada por meio da retenção na fonte de rendimentos, pode ser uma alternativa crível.
Medida adicional a ser adotada em vistas de uma melhor performance fiscal e de suficiência das entregas é o empenho pela maior eficiência na gestão, pois apesar dos elevados níveis de arrecadação, atualmente representando mais de um terço de toda a riqueza produzida no nosso país, os níveis de eficiência na gestão pública não se elevaram em proporcional medida. No Brasil muito se arrecada e pouco é devolvido.
Neste âmbito, infelizmente o diagnóstico da nossa gestão indica que só é possível se “fazer mais com mais”, isto é, a fonte de recursos a sustentar uma nova política pública dificilmente parte da inovação, do enxugamento de custos, do ganho de eficácia ou trabalho em escala, de sinergia em ações coordenadas, ou ainda do uso de recursos de TI ou IA, mas ao contrário, a costumeira resposta advém do incremento da arrecadação. É a solução habitual.
Não restam dúvidas de que caminhos existem, o que não se concebe é que por não termos até aqui a necessária competência na gestão de tão elevado volume de recursos geridos pelo Estado Brasileiro, escolha-se apontar a previsão constitucional de oferta de direitos fundamentais como a causadora de transtornos fiscais.
Neste embate o papel das Cortes de Contas se mostra crucial, devendo conduzir sua atuação para além da avaliação da conformidade da gestão pública, mas, sobremaneira, avaliando a efetividade dos serviços públicos, fazendo o cotejo entre os custos das políticas públicas e os resultados alcançados, avaliando seus níveis de eficiência, sem deixar de velar pela sustentabilidade fiscal.
Têm os Tribunais de Contas um papel protagonista em uma das mais sagradas missões constitucionais, qual seja, contribuir para a materialização dos direitos sociais nela previstos, retirando-os da prateleira imaginária dos preceitos constitucionais e os transportando para a realidade concreta da sua realização.
Eis uma bela razão de existir para qualquer instituição, encontrar no seio dos objetivos da Carta Cidadã uma extraordinária oportunidade de contribuir para a construção de uma democracia duradoura, assegurada pela ascensão das condições de vida das pessoas.
Aqui se identifica um propósito honroso, distingue-se uma preciosa missão!
*José Paulo Nardone é Diretor-Técnico da Unidade Regional do TCESP em Bauru (UR-2), Mestre em Direito do Estado e Professor Universitário.