ARTIGO: Evolução das contratações de manutenção de veículos automotores, por Alexandre Sarquis
*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis
Manutenção de veículos é objeto que amiúde surpreende o gestor. Isso pois automóveis são equipamentos relativamente complexos que conjugam de uma só vez alto custo de reposição, alta tecnologia e alta sobrevida. Os três adjetivos combinados acabam por aproximar a realidade das reiteradas manutenções preventivas e corretivas, agravadas pela imprevisibilidade nas intervenções – grandemente diversas entre si – e pela assimetria de informação. Enfim, tudo desfavorece o planejamento da Administração Pública.
A Lei de Licitações e Contratos, pensada com as grandes empreitadas do tempo do milagre brasileiro na memória, desde logo se mostrou inadequada para acomodar as tais contratações de “oficinas”. Basta perceber, para que assim se conclua, que a lei pede um conhecimento amplo do objeto, um orçamento estimativo aderente a certa formalidade, formalidade que se repete mais tarde na disputa, excessivamente jurídica, afastada do que é habitual entre os integrantes desse mercado.
De certo que boas práticas de planejamento são capazes de mitigar todos esses problemas, antecipando a demanda de forma a agregá-la, propiciando licitações de maior amplitude, que atraem fornecedores mais bem estruturados, ou registrando preços de autopeças estratégicas, enfim dotando os órgãos de uma infraestrutura contratual adequada. Se assim já vem caminhando a Administração, tanto melhor, mas, ainda assim, é atividade trabalhosa e de baixo valor agregado, se cotejada com as inúmeras outras urgências das municipalidades e Estados brasileiros.
Tomo como exemplo o que consta dos processos 8321/989/17 e 8678/989/17 (TCESP d.j. 13/12/2021), pois inúmeros foram os apontamentos ali formulados, que culminaram no julgamento desfavorável do contrato de manutenção da frota do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), por demanda, com fornecimento de peças de reposição e acessórios originais.
Ocorreram aglutinações de serviços que acabaram realizados sem solicitação, dentre outros apontamentos. Um breve extrato da decisão ilustra a dificuldade que a Prefeitura encontrou em trazer a termo a evidenciação exigida pela lei:
O Ex-Prefeito tratou ainda do apontamento sobre as datas do contrato e das notas fiscais, alegando que houve prazo curto por acúmulo de serviço. Porém, o contrato foi assinado em 22.12.2016 e as notas emitidas em 26.12.2016, e custa acreditar que todo o serviço descrito tenha sido realizado em poucos dias, que incluíam ainda o feriado de Natal.
Houve ainda apontamento de altos valores atribuídos a alguns serviços, assim descritos:
- reparo do sistema de injeção eletrônica (NF nº 168), no valor de R$ 18.326,00;
- reparo do câmbio (NF nº 198), no valor de R$ 19.320,00;
- reparo da transmissão (NF nº 195), no valor de R$ 19.480,00.
Como não há o registro dos serviços, a Fiscalização não pôde confrontar o que realmente foi efetivado com essas descrições. Neste caso, tanto a contratada quanto o Ex-Prefeito detalharam diversas notas fiscais apontadas pela Fiscalização em suas justificativas, inclusive essas, o que melhor descreve o serviço prestado, mas não comprova o motivo dos valores elevados.
Para nossa sorte o panorama foi revisto com a Lei 14.133/2021, que é o motivo que anima esta breve revisão.
É necessário contratar?
De plano, a nova lei vem reclamar que o gestor a todo momento atente para o custo do ciclo de vida dos objetos, evitando o imediatismo inconsequente que o foco no menor preço presente é capaz de causar. É o que se colhe logo ao art. 11.
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto (Lei 14133/2021).
Quanto aos veículos, entretanto, mais: a necessidade de manutenção se subordina à outra decisão que lhe antecede, qual seja, ser ou não proprietário do veículo. Confira o art. 44.
Art. 44. Quando houver a possibilidade de compra ou de locação de bens, o estudo técnico preliminar deverá considerar os custos e os benefícios de cada opção, com indicação da alternativa mais vantajosa. (Lei 14133/2021).
Assim que, de futuro, em aquisições de veículos, far-se-á obrigatória seção do Estudo Técnico Preliminar para analisar o mercado de leasing operacional do objeto, que possivelmente açambarcará os serviços de manutenção e seguro.
É necessário licitar?
Como visto, é possível que a manutenção de que tratamos nem seja uma cogitação. Se for necessária, entretanto, pode ser que a lei não faça da licitação uma exigência. São as chamadas contratações diretas, que se dividem em dispensas e inexigibilidades de licitação. A aquisição de peças genuínas, por exemplo, e desde que isso seja requisito indispensável para a vigência da garantia técnica, constitui caso de dispensa de licitação, nos termos do art. 75, IV, “a” (antigo art. 24, XVII).
Esse permissivo, contudo, cuida de contratação direta cercada de especificidades objetivas, subjetivas, circunstanciais – existência de garantia que faça tal exigência – e temporais – tão somente durante o período de tal cobertura. Por isso mesmo é procedimento residual no grande panorama das manutenções de veículos.
Exceto esse caso de garantia técnica vigente, no entanto, há outro para a contratação direta, conhecido como dispensa por valor. As contratações de pequena monta, de acordo com o quanto numericamente consignado em lei, prescindem da disputa formal. Trata-se de uma presunção de que o custo de tal controle excederia as vantagens dele advindas.
O limite por exercício financeiro e unidade gestora para tal prática era de R$ 8.000,00 em 1998 (art. 24, II), passou a R$ 17.600,00 com o Decreto 9412/2018, mas, com a nova lei, foi bastante aumentado. O limite é de $ 100.000,00 no caso da Administração Direta (art. 75, I), e R$ 200.000,00 para consórcios municipais (art. 75, §2º). Em 2021, com o Decreto 10.922/2021, os limites passaram a R$ 108.040,82 e R$ 216.081,64, respectivamente.
Veja que esse limite é anual e não se renova para cada manutenção que é feita, pois vai sendo consumido por cada nova contratação direta que, ao cabo, deve considerar todas as imediatamente anteriores a fim de evitar o conhecido “fracionamento” da despesa (antigo art. 23, §5º).
A forma com que se somam as diversas contratações diretas na aferição do limite se dá em atenção a tríplice critério: deve ser computado em cada exercício financeiro, ocupando os créditos de um mesmo orçamento; deve ser computado para cada unidade gestora, tal como seja a ordenança de despesas na organização local, desde que razoável; e deve reunir todos os contratos passíveis de fornecimento em meio a um mesmo ramo de atividade, ainda que não efetivamente o mesmo objeto.
É justamente na dispensa por valor que a reforma da lei se fez mais pronunciada, pois inaugurado novo limite abaixo do qual nem mesmo é necessário proceder à mencionada totalização. Vale dizer, o limite se aplica a cada contratação individualmente tomada em mecanismo que pode ser empregado reiteradas vezes.
Refiro-me ao art. 75, §7º (não se aplica o disposto no § 1º deste artigo às contratações de até R$ 8.000,00 de serviços de manutenção de veículos automotores de propriedade do órgão ou entidade contratante, incluído o fornecimento de peças). Atualmente tal limite é de R$ 8.643,27 (Decreto 10922/2021).
Fracionamento do fracionamento
Portanto, e a fim de deixar bem claro, não basta averiguar se o consórcio (por exemplo) despendeu mais de R$ 216.081,64 em contratações diretas de manutenções de veículos para concluir que houve fracionamento. O valor pode ser até mesmo muito maior. Faz-se necessário olhar as contratações individuais, cada qual.
Se dois contratos similares de manutenção em um mesmo ano e uma mesma unidade gestora, somados, excederem o limite de R$ 216.081,64, neste caso, sim, fracionou-se. Mas se são cem os contratos similares, cada qual de R$ 3.000,00, irrelevante se entabulados de maneira sucessiva (o termo de contrato não se faz necessário a teor do art. 95, I), validamente teremos contabilizado R$ 300.000,00 em dispensas com veículos sem que se fale em qualquer violação legal. Mais: o limite original do art. 75, I não se terá consumido em nada, pelo que continua disponível para as manutenções de valor mais relevante a serem contratadas diretamente.
Talvez seja de considerar, entretanto, sobre o fracionamento de fracionamento. Vale dizer, cabe perguntar se duas manutenções poderiam ter sido realizadas concomitantemente, e só não o foram socorrendo o exclusivo fim de refugir ao controle do art. 75, I, abusando da exceção que consta de seu §7º.
Para evitar tal vício, que chamo de “fracionamento do fracionamento”, um critério razoável parece ser o de se reunir os mesmos contratos em um mesmo veículo para uma mesma baixa. Assim, todos os gastos para recomissionar o equipamento de um mesmo ensejo parecem merecer agregação, para então serem cotejados com o limite de aplicabilidade do art. 75, §7º.
É necessário procedimento para dispensar?
Caso se afaste a licitação, é de se alertar que procedimento para contratar não está afastado – não com a nova lei, nem era com a anterior. É necessário documentar a necessidade e a escolha, atendendo ao procedimento. Esse procedimento, ademais, mudou sobremaneira com a nova lei.
De plano, advirta-se que os limites elastecidos a que se referiu antes somente estão disponíveis para os que optam por contratar diretamente usando a nova lei (Lei 14133/2021). Não é necessário que abandone em definitivo a Lei 8666/1993 em favor da nova, sendo possível realizar compras com o regime antigo e com o regime novo alternadamente. O que não se admite é a combinação de dispositivos oriundos de ambas em um mesmo procedimento (art. 191).
Na 8666/1993 as formalidades da dispensa eram mais acanhadas, destacando-se as justificativas de preço e de escolha do fornecedor (art. 26, p.ú., II e III), justamente as informações que o procedimento licitatório visa a suprir.
Na nova lei, entretanto, o requisito formal para o procedimento de dispensa é aumentado (art. 72), exigindo, além das justificavas de preço e de escolha do contratado, formalização da demanda, estimativa da despesa, parecer jurídico (quando cabível) e documentação de habilitação. Tudo isso, a bem da verdade, parecia constituir medida razoável desde antes.
Dispensa eletrônica
É a vez de introduzir outra bem-vinda evolução da nova lei, a chamada “dispensa eletrônica” do §3º do art. 75, regulada no plano federal pela IN SEGES 67/2021. Segundo tal mecanismo, faz-se uma forma de disputa simplificada, ainda que o valor permita a eleição direta do fornecedor.
De proveitos óbvios e imediatos, temos que o sistema acaba por conduzir à natural necessidade de que a demanda seja minimamente especificada, e propiciar justificativas adequadas para o preço e para a escolha do contratado, posto que ambos se originam de uma disputa pública.
Quanto à habilitação, não é possível contratar aquele que não goze de regularidade fiscal (Art. 193 do CTN), quem impedido ou inidôneo (CEIS, TCE-SP e CNJ), quem não reserva vagas de acordo com a legislação (art. 92, XVII), quem descumpre a legislação trabalhista (art. 91, §4º), quem tenha contra si decretada a falência (art. 137, IV) ou quem não cumpre o art. 7º, XXXIII da CF/88. Uma combinação de declarações e documentos acessíveis pela internet deve dar cabo do quanto necessário.
Impairment
Se a natureza da baixa não transparece com clareza suficiente a intervenção corretiva necessária para recomissionar o veículo e não há recurso humano bastante a oferecer parecer a respeito no órgão, pode ser necessária manutenção exploratória para tal averiguação. Essa vistoria pode, ela mesma, ser objeto de contratação.
Assim, em se concluindo ser pouco o custo da intervenção corretiva após a vistoria, insuficiente por si só a justificar dispensa eletrônica, procede-se incontinenti à correção, formalizando suficientemente ao fim. Em sendo intermediário o custo, o vistoriador produz a documentação idônea à instalação da dispensa eletrônica, com a vantagem de ser a proposta revisada pelos demais interessados, a quem se deve possibilitar vistoria própria.
Em sendo alto, entretanto, é necessário licitar, sem nunca deixar de atentar para o custo do ciclo total de propriedade dos equipamentos. Diz-se isso, pois é possível que a manutenção seja desindicada, por antieconômica. Aqui usualmente se comparava o custo da manutenção com o custo de reposição direta do bem, mas essa visão unidimensional não é suficiente por dois motivos.
O primeiro é que o veículo com avarias não é desprovido de valor econômico e pode ser leiloado no estado em que se encontra, propiciando um valor chamado recuperável. O segundo é que há um custo em termos de interesse público primário ao se privar a sociedade do uso do veículo pelo tempo que se faz necessário para manutenções. Os consertos, por vezes, podem não assegurar garantia nem up time compatível com o requisito de continuidade da prestação do serviço público.
Uma análise adequada vai tomar em conta esses eixos – no que se conhece como análise de impairment – e propiciará a decisão de realizar a licitação ou de leiloar o quanto recuperável, com renovação da frota.
Em suma
A guisa de fecho, resta a sensação de que o que se falou não passa de um acervo de obviedades a que bastaria o manejo de bom senso. Deve vir com alívio, então, perceber que tal tirocínio é o que consta da lei.
Quanto à provocação inicial, a moderna prática de manutenção de veículos é aquela transparente, bem documentada, com profissionais idôneos, atenta ao custo total de propriedade, preferencialmente precedida da dispensa eletrônica, mas dotada de limites mais adequados para afastar ritos excessivamente burocráticos.
*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis Auditor do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo
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