*Dimas Ramalho

O exame dos repasses públicos ao terceiro setor é, sem dúvida, uma das competências mais relevantes dos Tribunais de Contas. No caso da Corte de Contas Paulista, a importância da tarefa pode ser medida pelos vultosos montantes envolvidos. Segundo dados do “Painel do Terceiro Setor”, disponibilizado no site oficial do TCESP, Estado e Municípios transferiram, em 2023, nada menos que R$ 40,8 bilhões às entidades privadas sem fins lucrativos.

Naturalmente, tamanha quantidade de recursos exige do controle externo não apenas uma atuação diligente como também punição exemplar àquelas organizações que aplicam incorretamente as verbas públicas recebidas.

Nesse contexto, o art. 103, da Lei Complementar 709/93, a Lei Orgânica da Corte do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, prevê, em caso de irregularidade no uso do dinheiro público, a possibilidade de impedir que a entidade venha a receber novos repasses, até que se comprove a correção dos erros constatados. É a chamada pena de suspensão de novos recebimentos. O TCESP, inclusive, além de publicar no Diário Oficial, também divulga, no site institucional, a relação de entidades e órgãos proibidos de receber novos auxílios, subvenções ou contribuições.

A jurisprudência do Tribunal de Contas, todavia, sempre divergiu sobre a extensão da penalidade prevista no dispositivo legal citado. 

Alguns julgadores compreendiam que a pena de suspensão ficava restrita à esfera de governo do órgão no qual se operou a malversação dos recursos. Ou seja, a vedação de novos recebimentos ocorreria somente em relação àquela que foi a Administração Pública prejudicada ou sancionadora. A entidade, então, poderia seguir recebendo novos recursos de outros Municípios ou mesmo do Estado, quando os valores contestados não tivessem origem estadual.

Tal entendimento aplicava, por analogia, os dispositivos previstos na Lei Geral de Licitação e Contratos – a então Lei nº 8.666/93 ou a atual Lei 14.133/21 – interpretados pela Súmula 51 desta Corte do seguinte modo: nos casos de impedimento e suspensão de licitar e contratar (artigo 87, III da Lei nº 8.666/93 e artigo 7º da Lei nº 10.520/02), a medida repressiva se restringe à esfera de governo do órgão sancionador.

Porém, na sessão do TCESP do dia 29 de maio, por maioria, essa tese foi superada. Prevaleceu então o argumento de que a vedação de novas transferências se estende a todos os órgãos jurisdicionados do Tribunal (TC-018907.989.23-0). Em outras palavras, a entidade do terceiro setor declarada impedida de auferir novos recursos, nos termos do art. 103, da Lei Orgânica – constando, portanto, da lista de apenados – não poderá receber repasses seja do Estado, seja dos municípios sujeitos às competências do organismo de controle externo estadual.

A tese preponderante reconheceu que os ajustes com o terceiro setor possuem regime jurídico específico, afastando assim a possibilidade de analogia com preceitos do diploma geral de contratações públicas, a Lei 8.666/93 e a Lei 14.133/21.

De fato, a legislação estabeleceu regulação específica para as Organizações Sociais, com procedimentos de seleção e contratação que não se equiparam aos processos licitatórios, permitindo ao Poder Público a pré-qualificação de entidades e a possibilidade de contratações com termos mais flexíveis e baseada em resultados pré-definidos.

Tais características singularizam a natureza das contratações com o terceiro setor, permitindo, nos termos constitucionais, que o legislador estadual possa suplementar o regime jurídico existente ao criar sanções particulares, como faz o art. 103 da Lei Orgânica desta Corte. Essa penalidade, portanto, pode ser aplicada em toda a sua potencialidade, de modo que a suspensão de novos repasses valha para todos os jurisdicionados da Corte de Contas. Contudo, isso não impede que, ante o possível impacto social da decisão e eventual retrospecto positivo da organização, por exemplo, o Tribunal decida por restringir o alcance da sanção ou por deixar de aplicá-la.

O posicionamento do colegiado do TCESP, como fica claro, se dá no sentido da proteção dos recursos públicos. Ora, como uma entidade que comete irregularidades em um determinado ajuste está propensa a repeti-la em outros, enquanto ela não promover a regularização, não demonstrará também a integridade necessária para receber novos repasses, independentemente da origem federativa dos valores.

Ao fim e ao cabo, o entendimento fixado pela Corte de Contas Paulista tem o mérito não só de fortalecer as competências do controle externo como também de reforçar a compulsoriedade da lista de entidades proibidas de receber novos repasses, mensalmente atualizada no site do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

*Dimas Ramalho é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

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